segunda-feira, 17 de março de 2008

O poema do semelhante - Elisa Lucinda



O Deus da parecença
que nos costura em igualdade
que nos papel-carboniza em sentimento
que nos pluraliza
que nos banaliza
por baixo e por dentro,
foi este Deus que deu
destino aos meus versos,
Foi Ele quem arrancou deles a roupa de indivíduo
e deu-lhes outra de indivíduo ainda maior,
embora mais justa.

Me assusta e acalma
ser portadora de várias almas
de um só som comum eco
ser reverberante espelho,
semelhante ser a boca
ser a dona da palavra
sem dono de tanto dono que tem.

Esse Deus sabe que alguém
é apenas o singular da palavra multidão
É mundão
todo mundo beija
todo mundo almeja
todo mundo deseja
todo mundo chora
alguns por dentro
alguns por fora
alguém sempre chega
alguém sempre demora.

O Deus que cuida
do não-desperdício dos poetas
deu-me essa festa de similitude
bateu-me no peito do meu amigo
encostou-me a ele em atitude
de verso beijo e umbigos,
extirpou de mim o exclusivo:
a solidão da bravura
a solidão do medo
a solidão da usura
a solidão da coragem
a solidão da bobagem
a solidão da virtude
a solidão da viagem
a solidão do erro
a solidão do sexo
a solidão do zelo
a solidão do nexo.

O Deus soprador de carmas
deu de eu ser parecida
Aparecida santa puta criança
deu de me fazer diferente
pra que eu provasse da alegria
de ser igual a toda gente

Esse Deus deu coletivo ao meu particular
sem eu nem reclamar
Foi Ele, o Deus da par-essência
O Deus da essência par.

Não fosse a inteligência da semelhança
seria só o meu amor
seria só a minha dor
bobinha e sem bonança
seria sozinha minha esperança

Um comentário:

Livia Rios disse...

Lindo, lindo... "deu de me fazer diferente pra que eu provasse da alegria de ser igual a toda gente"!! Quanto mais pessoal e intransferível, mais coletivo e sábio.