segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Corpo criativo - Texto técnico.

“Mulungum” – Peça em processo.
O corpo criador a partir de técnicas de Teatro Físico.

Eu e Lívia desenvolvemos essa reflexão sobre o momento do devir criativo baseados no nosso processo específico dessa peça. Nele, a partir do nosso repertório técnico, criamos caminhos próprios, orgânicos, de concepção de cena. (Esse pequeno e despretencioso pensar sobre um processo corporal criativo não teria sentido se descolado do histórico de seus autores.)
Sobre essa criação e sobre o devir do corpo criativo, segue esse papo meu (Danilo) ator e autor da peça, com a Livia (Atriz da peça e parceira de concepção de treinamento):

Como é, dentro desse processo específico, a concepção corporal e criação de cena?

Vou tentar refletir usando um exemplo recente de uma cena do “Mulungum”.
A gente estava trabalhando com mímeses. Selecionei algumas referências pro personagem principal, algumas fotos e quadros naquele momento, então surge essa foto de um ator interpretando Jesus sendo crucificado. É no momento exato que estão martelando um dos pregos em sua mão e “Jesus” tem um forte olhar pra esse algóz que o está crucificando.
Para prepararmos o corpo, no dia em que eu iria trabalhar essa foto, passamos por um processo de níveis de tensão. Começamos criando tensão em partes diferentes do corpo e relaxando o resto do corpo, trabalhando esse isolamento. Depois distribuindo isso e dançando a partir dessas tensões. Deixando movimentos surgirem chamados por essas tensões. Dançamos com vários níveis diferentes de tensão que percorriam o corpo, inspirados na pesquisa do Lecoq dos níveis de tensão. Distribuímos isso pelo corpo, criando também diferentes níveis de tensões simultâneos por todo o corpo e dançando apartir disso. Dançamos durante uma hora, depois colocamos músicas e ficamos experimentando as sensações dessa dança das tensões e da influência sonora. Depois, deixamos de pensar nas tensões e dançamos mais meia hora livres, com essa memória recente já impressa no corpo. Nesse estado, fui olhar a foto novamente e dançar a partir das impressões e das fisicalidades desse registro. Começo a dançar e, depois de um tempo, surge uma cena. Nesse momento eu sinto que meu corpo pediu, muito mais que minha razão, uma movimentação pra expressar essa sensação em que eu me coloco. Me lembro então que o Simioni, assistindo a uma das cenas, me sugeriu que eu tentasse fazê-la imóvel, só com exploração de voz, ressonadores, expressões faciais e movimentos da cabeça. A sensação dessa cena que foi sendo criada, após a dança dos níveis de tensão e a influência da foto, me trouxe na hora pra aquela outra experiência da cena sugerida pelo Simioni. Isso exatamente porque eu estava fazendo uma mímese de uma foto de um ser crucificado, preso, imóvel e minha memória muscular, dentro do “jogo” dos níveis de tensão, me trouxe pra essa sensação novamente. De repente tudo se encaixa: o poeta, o personagem principal, nessa cena que o Simioni propõe, está imóvel fazendo um texto sobre o amor, tratando do exato momento em que Deus expulsa Adão e Eva do paraíso. O poeta se identifica com o Adão do poema que, mesmo perdendo o paraíso, expressa sua crença no amor. A imobilidade do Adão, vivida pelo poeta diante da destruição do paraíso, me remete a essa imobilidade de Jesus sendo pregado na cruz. Esse algóz da foto que prega a mão de Jesus, nesse instante, passa a ter, pra mim, na minha criação, o mesmo poder do Deus que encerra o paraíso, e Adão passaria a ser Jesus Cristo sendo punido. Na história da peça o Poeta acabara de perder seu filho por não conseguir cumprir um pacto com Deus. A dor vivida por Adão, Jesus e o Poeta, é de um mesmo cenário poético simbólico.
Conto esse desenrolar todo só pra que se tenha uma idéia de tudo que se gerou a partir de uma comoção corporal e alguns elementos físicos aplicados nesse instigar, para fazer esse corpo reagir criativamente. Não que essa história seja nescessária, na verdade não é a intensão tentar explicar o movimento e criar a história para traduzí-lo. Simplesmente essa é a história em que eu estou mergulhado no momento e meu corpo reage em relação a ela e aí a criação se faz. São maneiras diferentes em momentos diferentes de se chegar a esse ponto de criação. Como na cena de Deus, que eu achei a partir de um trabalho com o corpo do santo, técnica do LUME. Aí, eu acredito, está a ponte clara: o treinamento inserido na peça. Junto ao trabalho de dilatação e presença cênica.
Um outro elemento importante pra gente foi a opção da “colcha de retalhos” como proposta também de processo de criação da peça. Porque uma cena surge do trabalho de mímese unido ao trabalho dos níveis de tensão, outra cena surge do trabalho com o corpo do santo somado ao dançar fenômenos da natureza e a dinâmica com o objeto. Eu não pensei: “Hoje vou fazer uma cena misturando essas técnicas”. Essas cenas surgiram do treinamento. E aí o diferencial pra cada ator-criador. Porque a cena não se baseia num mesmo texto. Várias pessoas podem trabalhar essas técnicas, mas não é a técnica em si, é a comoção de um corpo único. Várias pessoas podem ter interpretações diferentes de um texto também, considerando as diferentes vivências de cada um, mas, ao meu ver, ainda é muito limitado porque vivemos sob muitos padrões de comportamento semelhantes. O corpo, quando realmente “desarmado”, mente menos do que a razão. Temos muito mais habilidade em disfarçar a partir da mente. O corpo traz respostas mais orgânicas quando “desarmado”. Logicamente que não visamos aqui colocar um contra o outro ou separá-los. Os dois estão sempre juntos, é simplesmente deixar o corpo guiar um pouco mais.
A variação das técnicas para se instigar o corpo também foi um caminho interessante pra gente. Cenas surgiram a partir de danças livres de Butoh, outras a partir da improvisação pós-exaustão. Trabalhamos e pensamos muito numa unidade ao final, mas deixamos a criação falar primeiro. Foi importante também ter tido um trabalho forte com o corpo do personagem, para ele se comover e se transformar com a textura de cada cena, mas ainda manter uma certa estrutura e não se misturar com a minha – corpo cotidiano do Danilo. O Zé é uma forma poética ampliada de mim mesmo que chamo de personagem, porque também não poderia chamar de persona, mas eu sei que sou eu, só não posso deixar que se descaracterize esse código poético que criei pra essa peça e, por isso, quanto mais vivo estiver no código mais posso me manter nele mesmo, mais ele me dá potência para me poetizar, e mais enriquecido e verdadeiro ele fica ao passar por tantas nuances e instigares diferentes. Acredito que, se tivéssemos optado por trabalhar a criação partindo de uma técnica apenas como meio de instigar o corpo, correríamos maior risco de uma peça chapada sem muita textura. A experimentação corporal variada de um corpo sincero, entregue, disponível, em risco, proposto a sair de seu estado de conforto, encontrou muito mais respostas e materiais para criação. Depois sim, pudemos organizar, aplicar dramaturgia, músicas, racionalizar mesmo, visando otimizar a comunicação e criar texturas de cenas não óbvias.
Outra coisa fundamental dentro do nosso processo foi não deixar o caminhar demasiado rígido. Ou seja, o foco existe, mas a permissividade também e, se surge uma cena que propõe um caminho diferente, vamos ouví-la.
A experimentação girou em torno de manter o corpo disponível através do treinamento diário, para que, ao mesmo tempo, criássemos racionalmente e pensássemos em elementos que gostaríamos de vivenciar em cena, e aí colocássemos o corpo disponível nessas situações, pra que ele nos desse as respostas de como poetizá-las. Estávamos em busca do máximo de organicidade na criação. Por isso, não queríamos aplicar técnicas às cenas para torná-las mais interessantes, queríamos que as cenas já surgissem do corpo em experimentação técnica. Sinto como dois caminhos paralelos que devem se cruzar naturalmente: a criação racional e a criação do corpo em treinamento e reações. Estamos pensando aí o Teatro Físico não só como treinamento e possibilidade de aplicação, mas como veículo de criação. Não é o pensamento lógico ditando como aplicar a técnica à criação, como método. É a técnica proporcionando um corpo criativo que deixa vazar uma expressão. Essa expressão pode ser qualquer coisa. Aí entra a razão e a sensibilidade para nos apropriarmos dessa expressão e enriquecermos a composição criada. Nesse momento, nos fazemos presentes enquanto atores-criadores, corpo e razão, para fazermos desse material uma peça, um espetáculo de dança, um número ou uma performance. Poderíamos pegar uma cena criada racionalmente com texto, por exemplo, e aplicarmos uma técnica nela. Mas essa técnica vai aparecer, porque é como uma camada de tinta em cima da cena, que vai ficar impregnada. Ela não foi motora da cena, foi uma roupagem. É como se eu ilustrasse a cena. Deixando o corpo viver essa técnica para aguçar memórias musculares e criar comoção artística, criamos as cenas de maneira mais orgânica, para que essa técnica, ao final, fique invisível. Porque não nos interessa que ela seja vista. O foco da criação passa a ser a minha expressão corporal (sem divisão de corpo, emoção, razão, alma, energia) para universalizar uma vivência pessoal, a minha reação a esses estímulos com verdade, para que o público sinta com verdade o que a eles comove. Aí não é mais a dança dos níveis de tensão, a mímese, o corpo do santo, é realmente o meu corpo em uma situação de comoção artística. E quando eu experimento esse corpo, com essa sensação dentro dessa situação (por exemplo a do Cristo), eu tenho meu corpo respondendo naturalmente como ele responderia nessas circunstâncias e me dando toda a complexidade dos sentimentos de estar vivendo isso. Quando olho o meu algóz que prega esse prego na minha mão, os níveis de tensão dançando no meu corpo são a fala e me dão a expressão para que meu corpo possa vazar isso, e para que as pessoas que me assistem possam “ler” e interpretar, dentro dos registros delas, essa movimentação. As pessoas que assistiram a criação dessa cena viram, cada uma a sua maneira, o comflito do perdão, do amor, com o medo e a indignação que eu realmente estava vivendo. Era a minha sensação física e emocional real, e não simplesmente projetada, que fazia meu corpo e meu olhar transmitirem aquelas sensações. Eu não pensava em contar história ou projetar memórias racionais e acredito não tê-lo feito. Aí eu, Danilo, posso contar o que o poeta Zé sentiu, o que esse Adão sentiu, o que esse Jesus sentiu, simplesmente porque eu sinto isso também. E aí eu acredito que as pessoas possam sentir, no registro delas, porque eu não estou representando a dor do Zé, nem do Adão, nem de Jesus, eu estou vivendo a minha dentro dessa estrutura poética que nos irmana. Eu não representei nem na criação e nem na cena, eu vivo isso, mas vivo para doar, como ferramenta de passagem, passagem de poesia. Eu não preciso aí tentar adivinhar o que a personagem está sentindo ou o que a pessoa da foto está sentindo, nem explicar o porquê daquela expressão ou das oposições do seu corpo, eu sinto e expresso o que o meu corpo sente nessa situação e com esses instigares. Isso é memória muscular do corpo em vida e aí, eu acredito, que se tem uma expressão “colada”, uma cena sincera e a vida poetizada em cena.

Final de 2009 - Estréia a peça "AMOR TALHADO E A FLOR DE MULUNGUM"


Danilo Dal Farra (Ator-criador)
Lívia Rios (Atriz-criadora)